segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Artigo: Por Valter Silva, Malandros Sem Navalha!


Quando presenciamos ou ouvimos cidadãos cobrarem honestidade dos políticos sem enxergarem a contradição de, às vezes, ou mesmo muitas vezes, fazer uso dos expedientes do jeitinho e da malandragem para resolver seus problemas cotidianos, temos a sensação de que há no Brasil uma dupla ética: uma que tem por princípio a honestidade e o cumprimento do dever ,coexistindo ao lado de outra “ética”, a  da malandragem, que valoriza a astúcia e que visa, sempre, a levar vantagem em tudo.

Curiosamente, esses dois modelos éticos não se eliminam um ao outro no cotidiano brasileiro; ou seja; não é que tenhamos um grupo de honestos e outro de malandros. Por vezes, uma mesma pessoa pode aderir em um determinado momento o lado honesto e, posteriormente, tomar como referência para a sua atitude o modelo do espertalhão. Dessa forma, o espírito do brasileiro admira o homem cumpridor dos seus deveres e que contribui para o progresso da nação; mas, por outro lado, aprecia também a inteligência e a sagacidade do malandro que, por meio das suas astúcias, consegue sobreviver  de maneira alternativa.

 Ao tomar essas duas categorias como modelo para agir, significa que mais do que a existência de um alto grau de transgressão, a própria transgressão, por meio do jeitinho e da malandragem, já se transformou em modelo! A figura do malandro, nesse contexto, é vista como um exemplo a ser seguido, ou uma espécie de paradigma ético  paralelo, onde em outras palavras, no Brasil,  ser esperto  e sempre tirar vantagem se converteu em norma.

Na tradição folclórica brasileira, Pedro Malazarte é o protótipo do malandro. Um dos dois filhos de um casal velho e pobre, enquanto o irmão mais velho, João, é  tido como trabalhador e honesto, Malazarte é astucioso e vadio. Pela situação precária da família, João vai trabalhar para um fazendeiro velhaco e explorador, sendo engabelado por um contrato de trabalho desonesto, onde, depois de muito esforço, acaba voltando  para a casa sem nenhum tostão; e o que é pior: Como se não bastasse a exploração, o patrão arranca dele uma tira de couro que vai desde o pescoço até o fim das costas .

Este ato de violência é legitimado pelo fato de João não ter conseguido cumprir as cláusulas do contrato. Revoltado, Pedro utiliza suas manhas para vingar o irmão e vai trabalhar para o mesmo fazendeiro que, depois de algum tempo, torna-se absolutamente pobre, graças às espertezas do Malazartes que, depois de retornar rico para casa paterna, resolve ter uma vida de andarilho, vivendo as mais diversas aventuras, nas quais, sempre, utiliza a astúcia para se safar e tirar vantagens de ricos e senhores.

 Assim, Pedro consegue trocar fezes por dinheiro; vende um urubu que diz ser encantado e que supostamente faria  adivinhações; desfruta de banquetes sem gastar nenhum tostão; ganha salários sem trabalhar e até usa o cadáver da própria mãe para extorquir  quantias de um latifundiário. Este personagem, porém, não representa nenhum reformista ou revolucionário da ordem vigente. Isto porque sua transgressão não visa à transformação do sistema, mas a manutenção da vida e da vantagem casual. Apesar de burlar as normas, ele não tem a pretensão de modificar o todo das instituições. O que lhe interessa  é continuar levando a vida de malandro e não se submeter à exploração do trabalho, contrariando, portanto, as instituições ético-jurídicas, mas, paralelamente, convivendo   com essas mesmas instituições.

Comparativa e infelizmente, a nossa atual sociedade  tem cultuado o Pedro Malazarte ao transformá-lo em padrão de pessoa exemplar. Notamos isso, diante de uma realidade social opressora, que praticamente impossibilita a sobrevivência sem o recurso da burla e da enganação e onde, enfim, pessoas de diferentes camadas sociais procuram dar um jeito para sobreviver e levar vantagem diante dos coronéis e poderosos em geral, até mesmo, utilizando-se do velho adágio popular: “Se não podes com eles, una-se a eles! Dessa forma, a necessidade da sobrevivência legitima a trapaça e se sobrepõe à moral da honestidade; valorizando, não a trapaça pela trapaça,  mas a trapaça justificada pela necessidade de sobrevivência.

Assistimos, entretanto, nos últimos anos, a uma mudança de comportamento da sociedade, sobretudo, na consciência e participação política dos cidadãos, onde a malandragem deixa de ser fator de sobrevivência, passando a ser referência de si mesma. Muitas pessoas, ora, glorificam a malandragem. Já não são malandras para sobreviver, mas, porque se deve ser esperto em todas as ocasiões!

Deixamos, aqui,  em forma, talvez, de alerta, uma interrogação: Será que ao pregar ou mesmo ao  adotar a malandragem pela malandragem  não perdemos o sentido original da própria malandragem,  que é a preservação da vida? Lembremo-nos de que a apologia à malandragem traz à tona o perigo da justificação de uma corrupção generalizada e o efeito colateral de todo um encadeamento de chagas sociais que tornam as condições de vida ainda mais precárias...parecendo até que não há mais nenhum jeito... Nem mesmo um jeitinho brasileiro...! Tenho dito!


Valter Silva é pedagogo pela UNEB e graduando em letras.
Escrito em mobilização do Sisef-BA, em Dezembro de 2015.






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