Quando
presenciamos ou ouvimos cidadãos cobrarem honestidade dos políticos sem
enxergarem a contradição de, às vezes, ou mesmo muitas vezes, fazer uso dos
expedientes do jeitinho e da malandragem para resolver seus problemas cotidianos,
temos a sensação de que há no Brasil uma dupla ética: uma que tem por princípio
a honestidade e o cumprimento do dever ,coexistindo ao lado de outra “ética”, a
da malandragem, que valoriza a astúcia e
que visa, sempre, a levar vantagem em tudo.
Curiosamente,
esses dois modelos éticos não se eliminam um ao outro no cotidiano brasileiro;
ou seja; não é que tenhamos um grupo de honestos e outro de malandros. Por
vezes, uma mesma pessoa pode aderir em um determinado momento o lado honesto e,
posteriormente, tomar como referência para a sua atitude o modelo do
espertalhão. Dessa forma, o espírito do brasileiro admira o homem cumpridor dos
seus deveres e que contribui para o progresso da nação; mas, por outro lado,
aprecia também a inteligência e a sagacidade do malandro que, por meio das suas
astúcias, consegue sobreviver de maneira
alternativa.
Ao tomar essas duas categorias como modelo
para agir, significa que mais do que a existência de um alto grau de
transgressão, a própria transgressão, por meio do jeitinho e da malandragem, já
se transformou em modelo! A figura do malandro, nesse contexto, é vista como um
exemplo a ser seguido, ou uma espécie de paradigma ético paralelo, onde em outras palavras, no
Brasil, ser esperto e sempre tirar vantagem se converteu em
norma.
Na
tradição folclórica brasileira, Pedro Malazarte é o protótipo do malandro. Um
dos dois filhos de um casal velho e pobre, enquanto o irmão mais velho, João, é tido como trabalhador e honesto, Malazarte é
astucioso e vadio. Pela situação precária da família, João vai trabalhar para
um fazendeiro velhaco e explorador, sendo engabelado por um contrato de
trabalho desonesto, onde, depois de muito esforço, acaba voltando para a casa sem nenhum tostão; e o que é pior:
Como se não bastasse a exploração, o patrão arranca dele uma tira de couro que
vai desde o pescoço até o fim das costas .
Este
ato de violência é legitimado pelo fato de João não ter conseguido cumprir as
cláusulas do contrato. Revoltado, Pedro utiliza suas manhas para vingar o irmão
e vai trabalhar para o mesmo fazendeiro que, depois de algum tempo, torna-se
absolutamente pobre, graças às espertezas do Malazartes que, depois de retornar
rico para casa paterna, resolve ter uma vida de andarilho, vivendo as mais
diversas aventuras, nas quais, sempre, utiliza a astúcia para se safar e tirar
vantagens de ricos e senhores.
Assim, Pedro consegue trocar fezes por
dinheiro; vende um urubu que diz ser encantado e que supostamente faria adivinhações; desfruta de banquetes sem gastar
nenhum tostão; ganha salários sem trabalhar e até usa o cadáver da própria mãe
para extorquir quantias de um
latifundiário. Este personagem, porém, não representa nenhum reformista ou
revolucionário da ordem vigente. Isto porque sua transgressão não visa à
transformação do sistema, mas a manutenção da vida e da vantagem casual. Apesar
de burlar as normas, ele não tem a pretensão de modificar o todo das
instituições. O que lhe interessa é
continuar levando a vida de malandro e não se submeter à exploração do
trabalho, contrariando, portanto, as instituições ético-jurídicas, mas,
paralelamente, convivendo com essas mesmas instituições.
Comparativa
e infelizmente, a nossa atual sociedade tem cultuado o Pedro Malazarte ao
transformá-lo em padrão de pessoa exemplar. Notamos isso, diante de uma
realidade social opressora, que praticamente impossibilita a sobrevivência sem
o recurso da burla e da enganação e onde, enfim, pessoas de diferentes camadas
sociais procuram dar um jeito para sobreviver e levar vantagem diante dos coronéis
e poderosos em geral, até mesmo, utilizando-se do velho adágio popular: “Se não
podes com eles, una-se a eles! Dessa forma, a necessidade da sobrevivência
legitima a trapaça e se sobrepõe à moral da honestidade; valorizando, não a trapaça
pela trapaça, mas a trapaça justificada
pela necessidade de sobrevivência.
Assistimos,
entretanto, nos últimos anos, a uma mudança de comportamento da sociedade,
sobretudo, na consciência e participação política dos cidadãos, onde a
malandragem deixa de ser fator de sobrevivência, passando a ser referência de
si mesma. Muitas pessoas, ora, glorificam a malandragem. Já não são malandras
para sobreviver, mas, porque se deve ser esperto em todas as ocasiões!
Deixamos,
aqui, em forma, talvez, de alerta, uma
interrogação: Será que ao pregar ou mesmo ao
adotar a malandragem pela malandragem
não perdemos o sentido original da própria malandragem, que é a preservação da vida? Lembremo-nos de
que a apologia à malandragem traz à tona o perigo da justificação de uma
corrupção generalizada e o efeito colateral de todo um encadeamento de chagas
sociais que tornam as condições de vida ainda mais precárias...parecendo até que
não há mais nenhum jeito... Nem mesmo um jeitinho brasileiro...! Tenho dito!
Valter
Silva é pedagogo pela UNEB e graduando em letras.
Escrito em mobilização do Sisef-BA, em Dezembro de 2015.
Escrito em mobilização do Sisef-BA, em Dezembro de 2015.
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